sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Pequenas cenas monocromáticas


Ele tinha aquele estranho medo repentino das manhãs, criança de si mesmo. Em seus limbos professorais e sintomáticos, cambaleava pelas beiradas pegajosas e estreitas que findam em encruzilhadas. Rugas amareladas delineavam seus traços descontínuos, incompletudes nas dores e nos amores: em tudo, nada era por inteiro. O dia socava sua mente sem pedir licença, emprestando incertezas àqueles que escorregam em suas iminências, fiam em suas promessas. Senhor das inconsequências, marionete cega das sucessões, oprimia suas forças através da falsa e poética leveza do anoitecer, guardador dos resquícios da véspera. Respirava em desafino, coçava a barba fazendo careta, consciente da obrigação de ali estar, existir. Questionamentos incabíveis e ininterruptos criavam pontes hipotéticas para transgredir sua alma em segundos. Nenhuma resposta, ausência de clareza, clarividência.
O despertador advertia para o inadiável, por que, apesar de toda desmesura incompreensível, é necessário algum quinhão miúdo pra cerveja, pra quitar o aluguel no último prazo e dar moedas trocadas para crianças no farol. Nos fios imaginários da vida, alinhavados por conjunturas improváveis, era sua maneira torta de limpar a consciência e cavar seu lugar ao lado de um deus que ele nem acredita tanto assim. Calçar os gastos sapatos e pôr a camisa surrada. E suar sob o sol sufocante. Sem reclamar, clamar, amar. Pensava em injustiças sociais, tremia de revolta com o estômago vazio no banco gasto do ponto de ônibus. Suportava o fardo das tormentas, a rudez dos ventos incertos. Faltava-lhe o conforto de qualquer coisa, o essencial descanso no colo macio de outrem. Na contramão da serenidade, em meio à impetuosidade dos seres e seus robóticos e apressados abalos, ruminava maneiras imbecis de abrandar o espírito para aliviar, domar, abater as horas seguintes, matar o tempo com o perigoso veneno da rotina e dos movimentos que se repetem.
Com um sorriso forçoso nos olhos, com marcas eternas na testa, com o cenho crivado por amarguras acumuladas. Sentado, sentido, sozinho. Solicitando perdão nas alamedas sem chegada, sem assoviar canção, com as mãos nos bolsos cheios de ar. Vendo-o daqui, diriam que é são, mais um em meio à multidão moribunda. Mas era louco no íntimo e no contorno de seus acenos, na soma de suas sentenças soltas em banheiros públicos. Esperava seu almoço ralo em um restaurante ensebado, em sua gasta memória corriam recordações inúteis, cenários forjados, possíveis erros que o fizeram chegar até ali. Conformado, entediado, preguiçoso ao menor gesto, tinha medo do suicídio e aceitava o fardo da existência com alguma condescendência fria.
Mudanças são necessidades quase que impenetráveis para quem brotou nessa terra empoeirada e dura. De algum modo, são para os que creem que o peso da coragem é maior do que o conforto indigesto da covardia. Os caminhos são longos e penosos para quem não troca de calçada ao divisar o desabrochar das flores. Não sem razão, considerava que o maior dos alentos era embriagar-se nas estações que nos escapam, apesar desses frenesis histéricos que nos pisam sem nos ver. Há alguns espirros concretos de felicidade nisso. Mas há também estranheza sobre aqueles que insistem em entrever conotações na escuridão, formas exatas na imprecisão das nuvens, desenhos contornados em jardins descuidados. É um pouco como uma cabana que se precisa construir para abrigar-se e evitar o sereno que nos despedaça: poucos são os que desvendam as direções e vertentes daquilo que não é palpável ou estão prontos para aguentar os rasgos iniciais do cotidiano.
De volta ao seu quarto, tudo lhe parecia terrivelmente estático, objetos velhos e poeira sufocante, comida congelada e televisão. Apenas em fagulhas soltas vislumbrava a alvorada que serena. Extinguiam-se os anos pelas rachaduras das mãos, tomava conta o silêncio, esse receptáculo misterioso de segredos nossos. A fadiga e o temor da inalterabilidade eterna impediam-no de sonhar através da imensidão das madrugadas e isso é uma coisa séria para um homem. Não há liberdade sem sonho, nem sonho em meio à insônia. Apenas pesadelos ressurgidos e concretos. E tão reais quanto uma ferida aberta que não cicatriza jamais.

O infinito é passageiro para os que toleram viver diante dos abismos. Ninguém iria replicar suas perguntas, seus sinais em formato de clichês inacabados. Um bocado de acalanto no vazio triste das coisas, sem o padecer indiferente dos céus e dos oceanos, é o que um homem busca na primavera que não chega. Mas nenhuma eternidade ou inspiração ou epifania são suficientes para compensar o sopro glacial das tempestades. E é preciso crença em qualquer ser, qualquer ver, qualquer amanhecer, para esquecer-se de todas essas pequenas cenas monocromáticas.