segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sobre o intangível

Enquanto encarava a mala disformemente atirada no canto obtuso e sujo da rodoviária, os olhos fixos nela, como que para relembrar mentalmente todos os inúteis objetos que ali dentro atirara meia hora antes, desenvolvia calado e para mim a estúpida ideia que todo vagabundo possui mesmo sem saber, a qual descrevo abaixo. Como disse, é estúpida e não merece ser lida nem por quem a desenrola. Ao mesmo tempo, ressurge na memória sem esforço ou necessidade e se escrevo-a é para esquecê-la:

Tenho uma teoria. Falha, é verdade, mas ainda assim é de se pensar: Um homem deve viver bem se estiver ao seu alcance um pedaço de pão, um vinho vagabundo ou uma dúzia de cervejas baratas, alguns amores e umas poesias soltas. Mais do que isso é exagero e vaidade, e esse mundo já está entupido disso. (E é com melancolia que recordo nesse instante: nenhum desses itens há na mala. Merda!). O dinheiro é escasso e o pão está caro demais - deve ser culpa da inflação. Sempre é. Mas um vinho de baixa qualidade e umas cervejas de sabor duvidoso sempre nos acolhem nas tabernas dessas solitárias ruas. Todos dizem e é mesmo verdade: incrível como o álcool torna algumas pessoas sociáveis, despreocupadas com o ingrato peso da realidade, talvez. Outras, porém, nem com grandes quantidades de fada verde, companheira da genialidade dos loucos boêmios desde tempos imemoriáveis, conseguem respirar aliviadas por deixarem de lado a sensatez. Notei ao longo desses anos que muito discernimento e razão, equilíbrio e raciocínio lógico tornam as pessoas rapidamente enfadonhas e pessimistas, burocráticas e infelizes, até com quem não merece ser tratado assim. É por isso que eu venero a loucura, os exageros e os palavrões. E prefiro que o bom senso seja deixado de lado, porque é geralmente nessas condições que as melhores risadas são dadas, que as maiores histórias são contadas, que as mais saudosas recordações são guardadas.
Que seria das relações sociais, dos infortúnios causados por celebrações tediosas, seja ela de qualquer espécie, sem a presença do álcool, na companhia de boas parcelas de hipocrisia? Verdades incertas e nada mais que isso! Hipocrisia, aliás, como pronunciou certa vez um amigo, é a maior das diplomacias. O que me leva a concluir, com um meio sorriso no canto dos lábios, que só se faz diplomacia de verdade com boas doses de bebida alcoólica no sangue. 


Quanto a poesia é ainda mais fácil. Algo escrito numa rocha já gasta, uma folha que se desprende do caderno de uma menina sonhadora, a orelha de um livro antigo ou rasgado, o estar a ouvir o vento assoviar pela janela de prosas inacabadas, e pronto: tem-se material suficiente para que se reflita taciturno sobre uma porção de questões pertinentes há existência. E matar o tempo assim é como deixar um legado para a eternidade, mesmo que ninguém ao redor se importe, saiba ou sinta, como de fato normalmente ocorre. O verso pode ser frouxo, desandar em rimas pobres ou mesmo serem palavras do Paulo Coelho: expiações sempre  nos fazem encontrar uma fresta de significado no oceano das incoerências.

Só quem vai para longe ver o sol nascer em horizontes de outrem é que pode se ver livre por alguns momentos da sujeira, do cansaço, da repetição, da pressão de ser alguém. Quem vê menos prédio e mais plantação, menos concreto e mais abstração, provavelmente é mais feliz. E é justamente quando se encontram as chamadas meias verdades, já fatigadas de doces desilusões. O destino se ri de nós por não sabermos nos afundar em profundas e profusas horas de silêncio e por querermos ser mais inteligentes que o tempo, único entendedor da orientação exata dos caminhos desconexos. Epifanias, esperanças ou coisa que o valha, só se alcançam pelos fugidios segundos dos ponteiros, impossíveis de serem duradouros e absolutos.

Como sempre, quem tem razão é o gênio Fernando Pessoa, sob a luz da poética quase pagã e ao mesmo tempo divina de seu heterônimo Ricardo Reis, ao dizer, com sua costumeira simplicidade esclarecedora: 

"Segue o teu destino, rega as tuas plantas, ama as tuas rosas. O resto é a sombra de árvores alheias. 
A realidade sempre é mais ou menos do que nós queremos. Só nós somos sempre iguais a nós-próprios." – perfeito e preciso como o pôr do sol depois do dilúvio.

E tem também os amores. Os amores. Mas esses não se pode prever, querer ou buscar. Surgem sem que se perceba, sem que se saiba ao certo por qual estrada seguirá, assim como os vales por entre montanhas. E se perdem despercebidos, como folhas ressecadas no quintal da casa velha. Imprevisível por essência, nos tira do sossego quando queremos esquecer e nos põe no delírio quando precisamos de descanso. Nos arranca o juízo e nos faz sair da linha. Mas o outro ângulo, aquele que enxergo apenas de supetão através de instantes vencidos e que mostra a mesma face da moeda já enferrujada, faz o mundo parecer pouco e pequeno, os problemas uma poeira na imensidão e a vida um lampejo breve e inesquecível.

Em verdade, nunca vi essa face, ou se quis ver estava cego. Em verdade, foi com melancolia e pesar que descobri que amar alguém pode não significar nada nessa vida. Porque geralmente as horas em que o mais belo pensamento recosta na breve lembrança dos sinais quase escondidos, transcorrem alhures aos desejos suprimidos e imediatos. E pode até ser bonito ou romântico que seja assim, mas apenas em fantasias infantis ou nessas histórias modernas de vampiros. Na vida real, essa em que a inquietação fala mais alto do que a pureza dos sorrisos, ninguém se importa muito. Há algum tempo, quando a escassez sórdida e a sutil ingratidão dos amores começaram a assolar, escrevi num guardanapo de bar um verso que até então não compreendia bem, mas agora relembrando talvez se encaixe nesses devaneios:

eu fui embora, mas não parti,
metade do que disse escondi.
agora apenas me calo, 
no melancólico sopro do teu hiato.

(Você me diz que precisa de colo quando está sozinha e que prefere estar só quando te ofereço o meu perdão. Acho que é por isso que eu gosto mesmo é de não te encontrar, só para me embriagar sem culpa, reclamar de tudo e escrever sobre o que quiser. Não como resposta, mas para esquecer; não para ter razão, mas para apaziguar o coração).

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