quarta-feira, 20 de julho de 2011

Em tempos quis o mundo inteiro.

Em tempos quis o mundo inteiro.
Era criança e havia amar.
Hoje sou lúcido e estrangeiro.
(Acabarei por não pensar.)

A quem o mundo não bastava,
(Porque depois não bastaria)
E a alma era um céu, e havia lava
Dos vulcões do que eu não sabia,

Basta hoje o dia não ser feio,
Haver brisa que em sombras flui,
Nem se perder de todo o enleio
De ter sido quem nunca fui.

Fernando Pessoa

....

Lembro-me bem do seu olhar.

Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto...
Sim o resto parece-se apenas com a vida.

Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona. Dói-me viver como uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das coisas
Onde sofrer seja uma coisa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo,
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real,
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Desenquadrado

Deitado e sem a placidez do sono, imagens desconexas e ofuscadas insistem em frequentar os vãos profundos da minha angústia. Formam um mundo que não ocupo, retratam uma estrada que nunca estive, revelam paisagens que nunca vi. Figuras embriagadas, simulacros inventados e lapsos de uma paz inexistente duelam por sobre a abstrusa mente que já não sabe diferenciar fato de ficção, desejo de necessidade, paixão de vaidade, abismo de deserto. Quando finalmente há sossego em meio ao tormento, depois de eternos desacordos da serenidade, já não sei mais se estou sonhando ou se criei, para suportar este fardo à qual chamamos realidade, um lugar onde possa sorrir através de frivolidades do coração. Sussurros noturnos, pulsações nas têmporas, resfôlego desacertado: e o dia nasce como se nunca tivesse morrido.