domingo, 12 de junho de 2011

Resquícios de ninguém

Ouvi baterem à porta. Não recordo se era quarta ou domingo, mas não importa porque os dias são sempre iguais e eu estava bêbado. Talvez fosse sábado. Mas lembro o quanto lamentei ao notar que me tiravam cedo de meu falso sossego, de meu estar afundado em devaneios e em pesadelos rotineiros, em meu abrigo retalhado por panos molhados. Desperto, sentei-me no sofá. Algo invisível rodopiava a minha volta e havia pigmentos na transparência do ar, como se tivesse ocorrido um incêndio por perto, ou houvesse alguém à fumar ao meu lado. Tive a sutil sensação de estar ainda dormindo, agindo em um sonho alheio a mim. Levantei sem saber ao certo por que, mas lembrei logo em seguida, pois soara uma vez mais o toque na porta. Caminhei a passos vagos até a maçaneta, com um embrulho mortal no estômago e uma vontade terrível de mudar de direção e atirar-me da janela entreaberta. Mas que sentido faz matar-se quando existe alguém batendo em sua porta?

Tropecei na desordem da sala, em rabiscos amassados e rascunhos cansados e prolixos. A garrafa de vinho, aberta e pela metade, ainda jazia sobre a mesa quebrada; peguei-a e dei dois longos goles, um para matar o desassossego de ter levantado de repente, e outro para querer esquecer que nessa vida nada tem solução. Era amargo respirar, como uma asfixia incurável, um descarrilar dos sentidos todos. Espreitado, o tormento cumprimentava-me, debruçando-se em todas as estreitezas daquele espaço, escondido por debaixo das tábuas de madeira podre, atrás das cadeiras carcomidas pelo tempo, através dos corredores mal iluminados, entre o ranger das venezianas descascadas. Com a visão periférica, percebi que achava graça da forma pela qual a loucura tomava conta de meus gestos inacabados.

Epifanias eram raras ali. Um relógio, pregado parcamente ao lado de um espelho rachado e que refletia o desatino da saudade, parecia estático com seus ponteiros mudos e preguiçosos, fazendo aumentar o desalento das badaladas intermináveis que teimam em não andar. O velho ventilador de teto, sem ritmo e barulhento, esforçava-se para romper o silêncio do ar rarefeito, mas só fazia multiplicar o mormaço que se estendia pelos lados das paredes mofadas. Via-se que o sol não dava trégua lá fora, massacrava os transeuntes sem compaixão. Mesmo assim, uma massa de ar fria e quase úmida me envolvia: as estações do ano são confusas e engasga meu peito esfacelado de pedra oca.

(Em um passado que se perdeu por lassidão, podia me enxergar por completo: foi-se o tempo em que sabia me encontrar nas esquinas de mim mesmo; hoje, ao curvar-me colocando meus tênis furados sabendo que sairei de casa, me esqueço, não sinto, quase sou, e não há coordenada geográfica que me dê um ponto exato, uma realidade sã, uma explicação absoluta ou nítida sobre qualquer coisa. Desdobro-me para deixar no fundo da gaveta o desencanto de dias passados e afogar minha misantropia em uma viela chuvosa; na verdade, os dias abrem-se ensolarados: os únicos escuros que vejo, estão em mim. Lá fora, tudo me sufoca com um tumulto de incertezas concretas, de expressões exaustas, de pesares que nunca foram, de flores murchas e estilhaçadas. Antes, aproximava-me do parapeito de cabeça erguida, e adiante enxergava uma fatia do céu encontrando a terra no horizonte, onde descansavam tranquilos os meus desejos possíveis. E mesmo as sombras gélidas do conjunto de concreto cinza, a circulação impaciente de pessoas lá embaixo, os diálogos que tomavam forma, a desilusão daqueles que iam sozinhos e pensativos, tudo isso coabitava as minhas percepções dentro de uma lógica razoável e existir era como sentir pela metade. Mas ao decorrer do meu trajeto pelos dias, tornava-se pequeno o parapeito, o céu e a terra não se falavam mais, o concreto me oprimia e as conversas eram barulhos desarmônicos.
Construí, para atravessar minhas próprias avenidas, pontes incertas e frágeis, fincadas sobre pontos cegos, cercadas por postes de luzes opacas e formas imprecisas, as quais só pude perceber através de telescópios da alma, de silhuetas enegrecidas. Tornei-me outro quando me perdi, porque o rumo errado que tracei destinou-me diálogos ininteligíveis com pessoas desconhecidas, vi objetos gelatinosos e imateriais, ouvi palavras em outra língua que não a minha, sinestesias formaram labirintos para os meus sentidos. E não houve bússola que me desse o norte para retomar o caminho que originalmente pensei seguir).

Foi de mão dada com essas imagens tortas e descontínuas, com essas figuras de um devir que nunca chega, de um futuro que se divorcia do passado sem avisar, que fui girar a chave, e transpassaram pela minha mente divergente, em um segundo eterno, todas as elucubrações da vida. Esse esforço para movimentar minha massa corpórea depreendeu de mim uma força colossal, quase desumana, e lembrei sem notar de Sísifo e sua pedra, como se toda condição humana dependesse de movimentos breves. Minha cabeça latejava, meus olhos ardiam, meus membros pediam descanso. Mas batiam novamente à porta, e percebi que só naquele momento despertara definitivamente: até aquele instante, era uma espécie de sonâmbulo consciente, assim como as pessoas que, desatentas, trafegam pelas ruas sem notar que a solidão se camufla entre a desordem.


Continua..

Um comentário:

  1. Continua? Conti e Nua? Ou Kant? Sabe o Noua? Ah que dúvida: quem estava na porta? E a porta? O Simmel dizia que a porta é que nos separa! Vê se você não pára! Senão, não será a mesma porta que irá nos separar!

    ResponderExcluir