sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Desassossego!

"Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me logo da cama, sob o estrangulamento de um tédio incompreensível. Nenhum sonho o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa. No fundo obscuro da minha alma, invisíveis, forças desconhecidas travavam uma batalha em que meu ser era o solo, e todo eu tremia do embate incógnito. Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar. Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum. Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos mínimos. Tive receio de endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. O meu corpo era um grito latente. O meu coração batia como se soluçasse."

...

"Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção! Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amamos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no decurso noturno do meu passeio à beira-mar...
Quem sabe sequer o que pensa ou o que deseja? Quem sabe o que é para si-mesmo? Quantas coisas a música sugere e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e choramos e não foram nunca! Como uma voz solta da paz deitada ao comprido, a enrolação da onda estoura e esfria e há um salivar audível pela praia invisível fora.
Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim vagueio, incorpóreo e humano, com o coração parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos, batendo alto, chasco, e esfriase, no meu eterno passeio noturno à beira-mar!"

Bernardo Soares - O Livro do Desassossego.

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